Com as recentes alterações introduzidas pela Lei Complementar 208/2024, surgem novas e preocupantes questões sobre a forma como a arrecadação e a fiscalização dos tributos estão sendo transferidas para os contribuintes. O que parece estar em curso é uma verdadeira privatização dos serviços de regularização fiscal, com o contribuinte assumindo o papel principal no processo de cobrança tributária.
A nova lei estabelece que o protesto extrajudicial de débitos tributários agora interrompe a prescrição do direito da Fazenda Pública de cobrar tais débitos. Em termos práticos, isso significa que a responsabilidade pela regularização dos débitos ou pela contestação dos protestos — e, consequentemente, pelos altos custos judiciais envolvidos — recai exclusivamente sobre o contribuinte. A Fazenda Pública, por sua vez, pode evitar recorrer ao método tradicional de execução fiscal, que parece ter caído em desuso.
A inclusão do protesto extrajudicial como hipótese de interrupção da prescrição no artigo 174 do Código Tributário Nacional (CTN) é uma mudança significativa que merece crítica. Até então, a jurisprudência, baseada na Lei 9.492/1997 e modificações posteriores, como a Lei 12.767/2012, permitia o protesto de certidões de dívida ativa, mas o STJ entendia que o protesto não interrompia a prescrição do crédito tributário. Esse entendimento garantia que a Fazenda Pública ainda tivesse que ajuizar a execução fiscal dentro do prazo prescricional.
O Supremo Tribunal Federal (STF), em 2021, apoiou a ideia de que o protesto poderia reduzir o número de execuções fiscais e aumentar a eficiência na cobrança. Contudo, essa visão ignora as limitações práticas do protesto extrajudicial. Embora o STF tenha considerado o protesto uma medida eficaz, o contexto judiciário revela um quadro diferente: a alta taxa de congestionamento das execuções fiscais (87,8% em 2023) e a ineficácia na recuperação de créditos tributários apontam que a efetiva recuperação ainda é um desafio.
A inclusão do protesto extrajudicial como mecanismo para interromper a prescrição, longe de resolver os problemas estruturais da execução fiscal, simplesmente transfere o ônus para o contribuinte. Em vez de uma solução que fortaleça a atuação da Fazenda Pública e aperfeiçoe a execução fiscal, a nova legislação promove uma privatização da cobrança tributária, tornando o contribuinte responsável por arcar com os custos associados ao protesto ou contestar a dívida judicialmente.
O impacto disso na prática é profundo: contribuintes se veem na posição de arcar com os custos de contestar uma cobrança, enquanto permanecem com a marca de devedor. Isso pode, em casos extremos, inviabilizar operações, especialmente para aqueles que fornecem serviços e produtos a entidades públicas.
Essa situação demonstra uma inversão de responsabilidades, onde o problema que deveria ser resolvido pela Fazenda Pública é agora transferido ao contribuinte. A reforma não aborda as deficiências do sistema de execução fiscal e, ao invés de promover um ambiente jurídico equilibrado e justo, perpetua uma estrutura onde o contribuinte é deixado a lidar com os impactos financeiros e administrativos de uma cobrança muitas vezes questionável.
Portanto, ao invés de fortalecer o sistema de execução fiscal e assegurar a justiça tributária, a Lei Complementar 208/2024 promove um processo de cobrança que transfere o ônus para o contribuinte e enfraquece o acesso ao devido processo legal. O verdadeiro objetivo de um sistema tributário eficiente e justo é garantir que as disputas sejam resolvidas de maneira equitativa, respeitando os direitos de ambas as partes. A nova lei, infelizmente, parece ir na direção oposta.