1. A Emenda Constitucional nº 132/2023 e a promessa de um novo modelo
A Emenda Constitucional nº 132, promulgada em dezembro de 2023, representa a mais abrangente reestruturação da tributação sobre o consumo no Brasil. Ao instituir a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), de competência da União, e o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), compartilhado entre Estados, Distrito Federal e Municípios, o novo modelo extingue cinco tributos (IPI, PIS, COFINS, ICMS e ISS) sob o ideal de racionalização, neutralidade e modernização do sistema. No entanto, a promessa de simplificação convive com um desenho institucional que mantém a autonomia plena das administrações tributárias, reproduzindo e até intensificando a fragmentação da arrecadação e do contencioso.
2. A triplicação do contencioso tributário como efeito colateral imediato
Um único fato gerador passará a ensejar três lançamentos distintos: CBS pela União, IBS-E pelo Estado e IBS-M pelo Município. Cada crédito poderá ser cobrado por meio de execução fiscal própria, perante Justiças distintas, e a impugnação também exigirá ações autônomas. Não há previsão de integração obrigatória dos processos nem de litisconsórcio necessário, de modo que a judicialização tenderá a se multiplicar exponencialmente. Projeções elaboradas pelo Grupo de Trabalho do STJ apontam que o número de execuções fiscais pode aumentar 26%, enquanto a Justiça Federal poderá registrar crescimento superior a 100% nas ações de cobrança. A litigância nas ações anulatórias e declaratórias também tende a crescer, especialmente pela imposição de relações jurídicas entre contribuintes e centenas de entes federativos distintos, em virtude da tributação no destino.
3. Fragmentação jurisdicional e os limites da coordenação administrativa
Embora a reforma preveja o Comitê Gestor do IBS e atribua à Receita Federal a gestão da CBS, esses mecanismos têm atuação limitada à esfera administrativa. No plano judicial, cada ente continuará promovendo sua cobrança em juízo próprio, e a legislação proposta (PLP 68 e PLP 108/2024) não impõe mecanismos de integração obrigatória entre os processos. A possibilidade de convênios entre entes é tratada como faculdade, e mesmo nos processos de pequeno valor, a delegação de atribuições é residual. O resultado é um modelo em que a multiplicação de ações judiciais sobre o mesmo fato imponível será regra e não exceção.
4. Conflito de competência e insegurança processual
A ausência de diretrizes claras sobre cumulação de pedidos, litisconsórcio ativo e passivo e foro competente compromete o princípio da segurança jurídica e poderá gerar forte instabilidade jurisprudencial. Um mesmo contribuinte poderá ser demandado em três ações de execução por um único fato gerador e, para defender-se, precisará manejar ações autônomas em juízos distintos. Do ponto de vista das ações declaratórias ou preventivas, o contribuinte terá que optar entre ajuizar ações separadas ou enfrentar a insegurança de cumulações ainda não disciplinadas. Em casos que envolvam tanto o IBS quanto a CBS, haverá deslocamento de competência da Justiça Estadual para a Justiça Federal, potencialmente gerando conflitos de competência e aumento da litigiosidade incidental.
5. Propostas em discussão e riscos estruturais
Entre as alternativas analisadas pelo Grupo de Trabalho do STJ, destaca-se a proposta de criação das Ações Diretas de Legalidade (ADL) e de Ilegalidade (ADIL), com competência atribuída ao STJ para julgar, de forma concentrada, atos infralegais e interpretações judiciais divergentes envolvendo os novos tributos. A proposta, embora busque uniformização e segurança jurídica, reduz o contraditório, suprime instâncias e pode gerar excessiva concentração decisória. Também está em debate a concentração de competência na Justiça Federal para todas as causas envolvendo a CBS e o IBS. Essa medida racionalizaria o contencioso, mas esbarra nas limitações orçamentárias da Justiça Federal, agravadas pela Lei Complementar nº 200/2023. Sua viabilidade dependeria da criação de um fundo específico de custeio e da recomposição dos quadros funcionais. Outras propostas, como convênios entre Estados e Municípios para execução conjunta ou a definição de alçadas para representação processual única por parte do ente mais estruturado, apresentam viabilidade técnica, mas carecem de regulamentação e vontade política coordenada.
6. O papel da advocacia tributária na transição institucional
Nesse contexto de fragmentação normativa e ausência de integração jurisdicional, o papel da advocacia tributária torna-se ainda mais estratégico. O profissional do direito deverá estar preparado para atuar em múltiplas frentes, dominando o novo regime jurídico dos tributos, acompanhando a regulamentação dos PLPs, propondo medidas preventivas e defendendo, em juízo, a racionalidade do sistema. A advocacia terá ainda papel relevante na construção institucional de soluções interpretativas coerentes, mediante interlocução com órgãos fazendários, Judiciário e entidades de classe. A experiência histórica demonstra que reformas fiscais, embora voltadas à simplificação, geram, no curto prazo, um aumento significativo de litígios. O momento exige, portanto, inteligência jurídica, capacidade estratégica e profunda familiaridade com a estrutura federativa e com os mecanismos processuais da tributação brasileira.
7. Conclusão: a urgência da integração e da racionalização judicial
A reforma tributária representa avanço no plano da justiça fiscal e da uniformidade normativa, mas seu desenho institucional, tal como concebido, pode gerar um contencioso fragmentado, massificado e potencialmente insustentável. O Poder Judiciário corre o risco de se tornar o principal gargalo da reforma caso não se adotem medidas legislativas e administrativas urgentes para integrar o lançamento, a cobrança e o julgamento das novas exações. O relatório do STJ é um alerta claro: sem coordenação institucional, o sistema ruirá sob o peso da multiplicidade processual.
A Moisés Freire Advocacia permanece comprometida com a análise técnica, a atuação preventiva e a defesa estratégica de seus clientes frente à nova realidade fiscal, oferecendo soluções jurídicas que conciliem segurança, economia e governança tributária eficaz.