Riscos Constitucionais e Processuais da Proposta de Litigante Único

I – INTRODUÇÃO

A reforma tributária implementada pela Emenda Constitucional nº 132/2023 e regulamentada pela Lei Complementar nº 214/2025 remodelou profundamente o sistema fiscal brasileiro. Entre as inovações, surgiram também novos desafios, sobretudo no campo processual. Um dos pontos mais debatidos é a ideia de adotar um litigante único: em vez de cada ente federativo litigar em nome próprio, apenas um deles representaria todos os demais em juízo nas ações envolvendo o IBS e a CBS.

À primeira vista, a proposta parece resolver um problema antigo: a multiplicação de processos e de decisões contraditórias. Mas, examinada mais de perto, ela traz riscos jurídicos e políticos relevantes, que precisam ser avaliados com cuidado.

II – FUNDAMENTOS JURÍDICOS

1. Autonomia federativa

A Constituição garante, no art. 18, a autonomia da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios. Essa autonomia não é apenas formal: envolve a capacidade de cada ente se organizar, administrar e, principalmente, gerir suas próprias receitas.

A autonomia federativa é a capacidade de autogoverno, de auto-organização e de autoadministração, inclusive no tocante à arrecadação e gestão de suas receitas próprias. O STF já reconheceu, em casos como a ADI 3.254/DF, que essa autonomia não pode ser relativizada apenas por razões de conveniência administrativa.

Se apenas um ente pudesse litigar por todos, os demais ficariam impedidos de defender diretamente seus créditos, o que atinge o núcleo do pacto federativo e poderia ser visto até como violação a cláusula pétrea.

2. Legitimação processual extraordinária

O CPC estabelece que ninguém pode pleitear em nome próprio direito alheio, salvo nos casos autorizados em lei. Trata-se da chamada legitimação extraordinária, que é sempre excepcional.

O STJ já deixou claro que ela só existe quando houver previsão legal expressa (REsp 1.267.879/SP, Rel. Min. Castro Meira). Transformar essa exceção em regra — como ocorreria com o litigante único — amplia demais o instituto, sem respaldo constitucional claro. Isso gera forte risco de inconstitucionalidade.

3. Uniformização de jurisprudência

Um dos argumentos a favor do litigante único é a necessidade de evitar decisões conflitantes. Mas nosso sistema já possui instrumentos para isso: o sistema de precedentes obrigatórios (arts. 926 e 927 do CPC) e a competência do STJ para uniformizar a interpretação da lei federal.

O STF, no RE 636.886/AL (Tema 118), destacou justamente que os precedentes cumprem papel fundamental para assegurar segurança jurídica. Assim, não parece necessário criar um modelo radical de concentração processual para alcançar esse objetivo.

4. Precedentes e analogias

Os defensores da proposta apontam como exemplo o Tema 1.234 do STF, que tratou da responsabilidade no fornecimento de medicamentos pelo SUS. No entanto, a comparação não se sustenta.

Na saúde pública, trata-se de uma política nacional de caráter tripartite, em que União, estados e municípios dividem responsabilidades. Já na tributação, o que está em jogo são receitas próprias de cada ente, sem as quais não há autonomia financeira. Transferir a defesa desses créditos a outro ente rompe a lógica do federalismo fiscal.

III – ANÁLISE CRÍTICA DA PROPOSTA

A ideia de litigante único apresenta fragilidades que não podem ser ignoradas. Primeiro, enfraquece a autonomia dos estados e municípios, ao retirar deles o direito de litigar sobre suas próprias receitas. Depois, cria insegurança: os critérios propostos, porte da empresa ou valor do crédito, são vagos e podem gerar disputas sobre quem deve ser o legitimado.

Há ainda o risco de centralização excessiva na União, que poderia ditar estratégias processuais sem levar em conta a realidade de estados e municípios. Essa concentração tende a favorecer o centralismo já criticado pela doutrina e a enfraquecer a representatividade democrática.

Do ponto de vista prático, a sobrecarga também é uma preocupação: concentrar milhares de processos em um número reduzido de procuradorias ou órgãos pode gerar ineficiência, em vez de simplificação.

Por fim, é importante lembrar que já existem alternativas menos invasivas: convênios voluntários de representação entre entes, fortalecimento do Comitê de Harmonização criado pela LC 214/2025 e uso mais efetivo do sistema de precedentes. Essas medidas permitem maior segurança jurídica sem renunciar à autonomia federativa.

IV – CONCLUSÃO

A proposta de litigante único nasce da intenção legítima de reduzir a litigiosidade e dar racionalidade ao processo tributário. No entanto, ao ser analisada à luz da Constituição, mostra-se problemática.

Ela ameaça a autonomia dos entes federados, extrapola os limites da legitimação processual extraordinária, cria insegurança quanto aos critérios de definição do legitimado e reforça o centralismo da União. Além disso, é desnecessária diante dos mecanismos já existentes de uniformização de jurisprudência.

Assim, conclui-se que a política de litigante único não deve ser adotada. O caminho mais adequado está em reforçar a cooperação e a coordenação entre União, estados e municípios, respeitando suas autonomias e aproveitando as ferramentas já previstas no ordenamento para reduzir divergências e litígios.

Sobre o(a) Autor(a)

Fernando de Melo Monteiro Filho

Pós graduado em Direito da Economia e da Empresa pela FGV, pós-graduado em Direito Tributário pela PUC-MG, graduado em Direito pela PUC-MG e em Engenharia Mecânica também pela PUC-MG.

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