A promulgação da Emenda Constitucional nº 132/2023 e a edição da Lei Complementar nº 214/2025 instituíram um dos mais ambiciosos projetos de reorganização fiscal da história recente do país: a Reforma Tributária sobre o consumo. Contudo, ao analisar os impactos sobre o setor automotivo, é necessário ir além das promessas de simplificação e reconhecer as contradições, riscos práticos e desafios estruturais que a nova sistemática impõe a uma das cadeias produtivas mais complexas e estratégicas da economia nacional.
1. O IVA Dual e a Suposta Simplificação: Um Mito Para o Setor?
Embora a substituição de tributos como PIS, Cofins, ICMS e IPI pelo IVA dual (CBS e IBS) prometa simplificação, essa meta encontra obstáculos concretos no setor automotivo. Trata-se de uma cadeia formada por múltiplos elos (montadoras, sistemistas, fornecedores, concessionárias e exportadores), fortemente verticalizada e dependente de regimes especiais.
A proposta de crédito financeiro amplo pode, de fato, representar um avanço no princípio da não cumulatividade. No entanto, a ausência de clareza operacional sobre o que efetivamente será creditável e a tendência de interpretações restritivas por parte do Fisco mantêm viva a insegurança jurídica já observada no modelo atual. Além disso, o dualismo entre CBS (federal) e IBS (estadual/municipal) pode gerar novos litígios federativos.
2. Imposto Seletivo: Finalidade Ambiental ou Novo Instrumento Arrecadatório?
A criação do Imposto Seletivo para veículos foi anunciada como mecanismo extrafiscal voltado à sustentabilidade. Contudo, sua previsão ampla e a possibilidade de gradação de alíquotas com base em critérios técnicos, ambientais e tecnológicos (muitos deles subjetivos ou de difícil mensuração) expõem o setor a um ambiente de incerteza e potencial aumento da carga tributária disfarçada de política ambiental.
A promessa de alíquota zero para categorias específicas, como taxistas e pessoas com deficiência, embora meritória, pode gerar distorções mercadológicas e incentivar planejamentos tributários oportunistas. O risco é que o IS acabe se tornando mais um tributo com fins arrecadatórios sob o manto da seletividade, fragilizando o princípio da transparência fiscal.
3. Extinção da Substituição Tributária: Ganho Teórico, Complexidade Real
O fim da substituição tributária do ICMS até 2032 é, em teoria, uma simplificação importante. Contudo, na prática, o modelo foi incorporado à lógica de precificação e ao fluxo financeiro do setor. Retirá-lo abruptamente exigirá revisão integral dos contratos com a rede de concessionárias, redefinição de margens e reestruturação de sistemas, podendo gerar impactos negativos no curto e médio prazo.
Além disso, ainda que o sistema de crédito universal prometa redução da cumulatividade, a experiência brasileira mostra que, sem fiscalização inteligente e adequada infraestrutura tributária, a não cumulatividade plena pode se tornar um ideal distante, perpetuando créditos acumulados e insegurança.
4. Créditos Presumidos Regionais: Transição Temporária ou Extinção Anunciada?
A manutenção de créditos presumidos da CBS até 2032 para projetos localizados nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste é uma tentativa de compensar o fim dos benefícios regionais. No entanto, a restrição ao gozo cumulativo com outros incentivos, o caráter temporário da medida e as exigências de habilitação rígidas sinalizam que os incentivos regionais estão em processo de extinção programada, o que pode comprometer a competitividade dessas localidades.
A nova regra não oferece previsibilidade para projetos de longo prazo, elemento essencial para decisões de investimento no setor automotivo, especialmente em plantas industriais que demandam décadas para amortização e maturação.
5. Tributação no Destino: Perda de Atratividade e Risco de Desindustrialização
A adoção do princípio do destino, segundo o qual a arrecadação será direcionada ao local de consumo final, pode enfraquecer a lógica de industrialização baseada em incentivos estaduais. Com isso, Estados produtores perderão atratividade, e o setor poderá assistir a um movimento de relocalização industrial, não necessariamente baseado em ganhos de eficiência, mas sim em interesses arrecadatórios.
Trata-se de uma mudança que contraria décadas de política de desenvolvimento regional e que pode agravar assimetrias federativas já existentes, inclusive desestimulando investimentos em estados tradicionalmente industriais.
6. Afastamento da Zona Franca de Manaus: Injustificável e Contraproducente
Outro aspecto controverso é a exclusão expressa do setor automotivo dos benefícios fiscais da Zona Franca de Manaus. Tal medida ignora a importância histórica e logística da região, além de contradizer o próprio objetivo constitucional de preservação e incentivo da Zona Franca. O afastamento da indústria automobilística desse regime especial compromete projetos já instalados e esvazia a política pública de integração nacional.
Conclusão: Uma Reforma que Pode Penalizar a Indústria de Maior Valor Agregado
A Reforma Tributária, ao tentar padronizar a tributação do consumo, parece ignorar a singularidade da indústria automotiva, marcada por alta complexidade tecnológica, cadeias longas e presença relevante no PIB, nas exportações e na geração de empregos qualificados. Embora traga avanços conceituais, como o crédito amplo e a extinção de regimes regressivos, a forma como a reforma foi desenhada pode impor custos de adaptação excessivos e desestimular investimentos.
A ausência de previsibilidade, a concentração de poderes regulatórios em órgãos ainda a serem estruturados (como o Comitê Gestor do IBS), e a tentativa de “zerar o jogo” fiscal sem considerar as especificidades produtivas podem resultar em um cenário de insegurança jurídica, aumento de litígios e encarecimento da operação.
Diante disso, é fundamental que o setor automotivo atue proativamente no diálogo com o Legislativo e o Executivo, buscando aperfeiçoar os instrumentos de transição, preservar a atratividade industrial do país e garantir um ambiente tributário justo e competitivo.